
POR GABRIELE DUARTE
As mulheres, em geral, são socializadas para competir umas com as outras, desde a escola, como quando as meninas brigam para atrair a atenção de um menino, até a vida adulta, quando uma julga ou prejudica a outra no ambiente de trabalho para se sair melhor com o chefe. Porém, o movimento de mulheres trouxe um conceito que, se aplicado diariamente, pode mudar esse contexto de rivalidade entre elas em prol de reivindicações próprias. Trata-se da sororidade, um neologismo capaz de expressar a união e a aliança entre pessoas do gênero feminino em várias dimensões da vida.
A origem da palavra está no latim sóror, que significa “irmãs”. O termo pode ser considerado a versão feminina da fraternidade, que se originou a partir do prefixo frater, que quer dizer “irmão”. Na semana em que é lembrado o Dia da Mulher, em 8 de março, a Versar conta a história de cinco personagens que aplicam a tal sororidade de alguma forma no dia a dia em Santa Catarina. Trabalham em rede, se inspiram em outras mulheres e trabalham para elas. Conheça as histórias de Fabrízia, Gabriela, Cauane, Miriam e Sílvia.
Fabrízia de Souza Felipe

Assim que completou a maioridade, Fabrízia de Souza Felipe, 34 anos, passou a caprichar no
figurino para sair à noite. Deixou de lado a calça jeans, a camiseta e o tênis para investir no combo vestido e salto alto. Sentiu-se tão confortável a ponto de não querer mais usar as roupas
masculinas. Foi assim que se descobriu mulher, como ela mesma conta.
– Ah, eu me sentia. Me encontrava mais dessa forma – resume.
Fabrízia é daquelas manezinhas da Ilha de Santa Catarina que, tão logo afirma ser nativa de Florianópolis, acrescenta que nasceu na Carmela Dutra em vez da Carlos Corrêa, únicas maternidades disponíveis na Capital até 1995. Cresceu não tão longe dali, na Serrinha, no seio de uma família humilde que soube compreender a transgeneridade da mulher, que tem dois irmãos. Ela não encontrou a mesma aceitação no salão de beleza em que chegou a trabalhar como auxiliar e recepcionista.
Assim como três quartos da população trans no Estado, que não encontra emprego devido ao preconceito, Fabrízia conheceu a informalidade no mercado de trabalho depois da transição de gênero. Acabou prostituindo-se aos 22 anos, inicialmente em Criciúma, passando por Joinville, Rio Grande do Sul e, depois, na Europa. Depois das experiências positivas na Suíça e na Itália, voltou em 2011 determinada a mudar a realidade no país em que nasceu, onde uma pessoa trans é assassinada a cada dois dias, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
– Lá as mulheres trans são muito respeitadas, tratadas como ladies mesmo. Isso me inspirou a voltar para mostrar às meninas daqui que existem outras formas de trabalho – detalha.
Ao lado de Lirous Fonseca Ávila, Fabrízia é responsável pela Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (Adeh), uma organização não-governamental que acolhe a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero (LGBT) em Florianópolis. Dentre outros serviços, são oferecidos cursos técnicos e profissionalizantes.
– O que me inspira a continuar lutando por outras mulheres, especialmente as trans, é o meu sonho – conta Fabrízia.
Miriam Pillar Grossi
Prestes a completar 30 anos de docência, a pesquisadora Miriam Pillar Grossi conseguiu reunir quase 10 mil pessoas, a maioria mulheres, em um evento organizado em agosto na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Um número surpreendente, principalmente se comparado à primeira edição do Fazendo Gênero (que neste ano foi co-organizado junto ao Mundo de Mulheres), que teve menos de 100 participantes.
Para Miriam, que é um dos expoentes da antropologia feminista no Brasil, a articulação desse tipo de estudo com o movimento de mulheres voltou a se fortalecer recentemente. Prova disso é a diversidade de perfis que estiveram reunidos em Florianópolis para o congresso: de acadêmicas à ativistas do Brasil, da América Latina, da Europa e até da África.
– Os estudos de gênero compõem um campo muito próximo da realidade, ou seja, da vida das pessoas. E, a partir do teórico-conceitual, é possível se pensar em como viver e buscar melhorias. Ninguém sai de uma disciplina ou oficina de gênero da mesma forma que entrou – sugere.
Filha de uma professora e de um médico, Miriam vivenciou a ditadura na infância vivida no Rio Grande do Sul. Ouvia as discussões dos pais, envolvidos em movimentos de esquerda da Igreja Católica, mas era impedida de reproduzi-las fora de casa. A formação crítica que a incentivou a estudar, trabalhar e ter autonomia culminou com a escolha pelas ciências sociais e a participação no movimento estudantil. Da universidade federal gaúcha – onde conviveu com pesquisadoras referências na área que escolheria adiante, Maria Noemi Brito e Cláudia Fonseca –, ela foi a Paris para o mestrado e o doutorado. A investigação do “SOS Mulher”, embrião das delegacias da mulher no Brasil, deu base à articulação para a aprovação da Lei Maria da Penha, que cria mecanismos de proteção às vítimas de violências de gênero.
– Esse é um exemplo acabado entre o feminismo da academia, de militância e de Estado – define Miriam.
Ao longo dos 29 anos como professora, ela já orientou o trabalho de mais de 100 estudantes da graduação e da pós-graduação. Também gerenciou projetos de extensão que tinham por objetivo levar os conhecimentos da academia para a comunidade, sendo o exemplos o “Papo Sério” e o “Concurso de Cartazes LGBT”, ambos do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (Nigs) que focavam em escolas catarinenses. Atualmente, por meio do Instituto de Estudos de Gênero, que reúne mais de 100 doutoras na UFSC, estuda as políticas públicas voltadas ao gênero e à diversidade. Ainda tem o sonho de criar, na UFSC, a graduação em gênero.
Sílvia Folster
Gabriela Zanella
Antes de trazer ao mundo o primeiro filho há 13 anos, Gabriela Zanella preparou-se fisicamente. À época uma estudante de fisioterapia na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), ela privilegiou exercícios físicos que contribuíssem para o parto natural. Acabou se esquecendo de fortalecer o aspecto psicológico que também é exigido nesse momento.
Apesar da presença do companheiro, sentiu-se sozinha. Também viu os profissionais de saúde injetarem a ocitocina sintética, o “hormônio do parto”, e analgésicos para acelerar o nascimento do primogênito.
– Faltou um apoio emocional, de alguém estar ali nos explicando e acolhendo – lembra.
O sentimento de fracasso, apesar de Pedro ter nascido saudável, prevaleceu no puerpério de Gabriela. A fisioterapeuta não se conformava por ter passado por aquele tipo de intervenção farmacológica, mesmo sabendo que poderia ter sido pior. As situações de violência obstétrica também incluem outros procedimentos, como os cortes feitos na musculatura entre a vagina e o ânus. Encorajada pelo próprio obstetra, ela foi atrás de respostas no trabalho de conclusão de curso da faculdade, em 2007. Descobriu uma série de alternativas para alívio da dor no parto, tais como água quente, exercícios específicos e técnicas de respiração, nenhuma delas envolvendo remédios.
– Eu pensava: como é que as mulheres pariam antigamente? Já sentia que nem todas precisavam da analgesia e de outras intervenções drásticas que acontecem. E, lendo sobre isso em artigos americanos, encontrei o lugar da doula, que aumentava a taxa de sucesso dos partos, principalmente relacionada à satisfação da mulher – conta.
Gabriela gostou tanto do termo e da atuação proporcionada por ele que foi atrás de formação. Em setembro do mesmo ano, tornou-se uma das primeiras doulas de Santa Catarina.
– É um resgate das informações que nós, mulheres, não temos mais. Da fisiologia do parto, de como ajudar umas às outras e se fortalecer nesse lugar – comenta.
Em uma época que a profissão de doula era praticamente desconhecida no país, Gabriela se esforçou para disseminar esse tipo de conhecimento. Aos poucos, viu o objetivo ser alcançado. Nas contas da Associação de Doulas de Santa Catarina (Adosc), já são 400 profissionais no Estado, sendo 100 somente em Florianópolis, onde ela atua e é presidenta. Regulamentada no ano passado, a lei 16.869/2016, que autoriza a presença de doulas mediante solicitação das gestantes em maternidades e hospitais catarinenses, é a principal conquista política do grupo, que agora trabalha para que haja adesão por parte das mães e, principalmente, respeito dos profissionais de saúde.
Ao longo dessa década de trabalho, Gabriela valoriza o trabalho em rede com outras mulheres no que ela chama de “caminho do meio” entre um parto violento e uma cesárea sem necessidade. Inspirada pela mexicana Naolí Vinaver, Gabriela vai buscar agora na enfermagem a complementação na atuação por outras mulheres no momento em que elas se tornam mães. Também quer ser parteira.
Cauane Maia
Quando ainda vivia em Salvador (BA), Cauane Maia, 35 anos, já vivenciava a música. Ela participava de uma banda mista, na qual eram direcionados às mulheres os instrumentos considerados mais leves. Em terras catarinenses, no ano de 2015, a história mudou: conheceu o grupo Cores de Aidê logo no início da formação para assumir os batuques do fundo, uma percussão bastante imponente. Outra diferença, que lhe agradou ainda mais, foram as composições próprias sobre mulheres que são cantadas, tocadas e dançadas, principalmente as negras, em relação às quais Cauane se identifica.
– O Cores de Aidê é um lugar de afrontar. É arte, mais do que entretenimento. Exige reflexão. Hoje, podemos dizer que mais de 300 mulheres se modificaram e ainda se modificam por meio do grupo – define.
Para ela, participar da banda garante um diálogo sobre raça e gênero não só com quem já está habituado às temáticas, por meio das rodas de conversa que acontecem mensalmente (uma delas, por exemplo, debateu a violência contra a mulher em rodas de capoeira), mas principalmente entre quem nunca ouviu falar sobre esses assuntos. Isso porque as integrantes da Cores de Aidê levam o samba reggae engajado aos mais variados espaços de Florianópolis.
– A cidade é bem segregada. E nós somos corpos que não estariam em outros lugares cantando e dançando. Por meio da arte, combatemos o machismo e ainda contemplamos o racismo – lembra.
Filha de uma mãe solo que era empregada doméstica na Bahia, Cauane tem formação em administração e ciências econômicas. Chegou até o Estado catarinense por meio de um emprego nessa área, mas acabou enveredando para o campo da pesquisa atraída pelo debate étnico-racial. Hoje, ela investiga na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) as mulheres negras do Pastinho, uma localidade do Monte Serrat, na Capital. Inspirada por Lélia Gonzalez e Jeruse Romão, Cauane faz questão de unir a intelectualidade ao ativismo.
– Minha mãe sempre me situou ao dizer que eu era negra, que tinha cabelo crespo e que não era marrom-bombom. Mas aqui houve um descortinar diferente para o meu entendimento e aceitação enquanto mulher negra. Despertei para o ativismo negro e o Cores de Aidê me dá munição de pesquisa – indica ao citar um episódio em que teria sofrido racismo de uma ex-colega de trabalho.
Na universidade, ela também integra o coletivo Negro 4P. Por isso e pela própria vivência, que faz questão de destacar que ainda não é de privilégio, sustenta que a academia é um espaço de embate constante para negras.
– O que me move é a possibilidade de afetar a outra. De transformar olhares por meio do afeto. Quando estou falando em determinado espaço e vejo olhinhos revirando, gerando desconforto, sinto que cumpri meu papel – indica Cauane, que pretende continuar o estudo interseccional paralelamente à música.
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